Solenidade da Assunção de Maria
Ap 11,19a;12,1.3-6a.10ab; Sl 44; 1Cor 15,20-27a; Lc 1,39-56
21 de agosto de 2022

Homilia

Este relato evangélico que acabamos de ouvir está cheio de um frescor muito agradável de redescobrir depois de ter ouvido a imagem um tanto violenta da visão do Apocalipse que a primeira leitura nos comunicou, ou o que o texto de São Paulo que nos descreve Cristo destruindo e esmagando todos os seus inimigos com os pés, mesmo que o último inimigo que ele destrua seja a morte.

São Lucas nos mostra uma jovem filha de Israel, recém engravidada, correndo pelas montanhas da Judéia para ir saudar sua prima idosa, que também estava grávida mesmo em sua idade avançada. É fácil reconhecer neste relato de Lucas todas as imagens do transporte da Arca da Aliança descritas no capítulo 6 do 2º Livro de Samuel. Maria é a nova Arca da Aliança, onde reside o Senhor dos Senhores; e, assim como a primeira Arca foi transportada pelas montanhas de Judá para a casa de Obede-Edom, onde havia sido uma fonte de bênçãos (2Sm 6,10-12), da mesma forma Maria correu pelas montanhas de Judá, levando consigo o Filho de Deus e traz alegrias e graças à casa de Isabel, sua prima. E, assim como Davi, naquela ocasião, havia dançado diante da Arca, João Batista “pulou de alegria” no ventre de sua mãe Isabel diante de Maria, a nova Arca.

No entanto, não nos deixemos encantar facilmente por este frescor. Pois assim que Maria entoa seu cântico de louvor, esse louvor já assume tons quase bélicos, assim como o relato do Apocalipse. Deus “dispersou os soberbos… Derrubou do trono os poderosos… e despediu os ricos de mãos vazias”. E isso nos traz de volta à história do Apocalipse.

Na época em que João, na ilha de Patmos, escreveu seu Apocalipse, a Igreja estava no meio de uma grande perseguição. Muitos cristãos foram mortos porque ousaram confessar publicamente sua fé e se recusaram a negar a Cristo quando eram forçados a fazê-lo. Os “sinais” do Dragão e da Mulher vestida de sol, a lua sob seus pés e sua cabeça coroada de doze estrelas, representavam, de um lado, a Igreja e, do outro, o poder opressor e perseguidor. O Apocalipse foi em todos os sentidos um escrito subversivo (revolucionário). Assim foi também o Magnificat de Maria, que proclamou a vitória final dos pequenos, fracos e oprimidos. Mas atenção! Este Magnificat não trata da vitória de uma violência sobre outra violência, mas sim da vitória do amor de Deus sobre a violência dos seres humanos. “Sua misericórdia se estende, de geração em geração”. É um amor maternal, ao qual o Novo Testamento muitas vezes dá o nome de misericórdia, traduzindo uma raiz aramaica (rekhem) que designa o seio materno. A partir deste canto de Maria, sabemos muito claramente de que lado Deus está sempre que os humanos, seus filhos e filhas, são vítimas da violência.

Assim como o autor do Apocalipse lê os eventos de seu tempo à luz dessa revelação, assim também nós também devemos. Durante os primeiros séculos da Igreja, foi o Império Romano que travou uma guerra santa, em nome da religião do Estado, contra as novas “seitas” – e o cristianismo era reconhecido como uma delas – que eram vistas como inimigas da “religião” oficial do Estado. Hoje, exceto em raros cantos do planeta, os Cristãos não são perseguidos porque confessam Deus. Mas, em uma escala universal, e talvez de uma maneira mais massiva do que nunca, os fracos e os pequenos estão sendo esmagados pelos grandes e poderosos. Não faltam testemunhas de fé. Mas quando são eliminados, geralmente é por terem assumido a defesa dos pequenos e oprimidos, e por terem se identificado com eles.

Os últimos cinquenta anos viram vários regimes totalitários com os quais os poderosos deste mundo permaneceram bem acomodados até o dia em que pareceu oportuno derrubá-los por meio da violência (a monarquia, por exemplo que, por meio de guerras e revoluções, deu lugar às atuais formas de governo). Mas ao lado desses regimes totalitários desenvolveu-se outro “regime”, em escala global: o rolo compressor de uma forma de economia mundial que nunca deixou de gerar a pobreza das maiorias para permitir o enriquecimento de uma minoria. E, ainda por cima, são as grandes massas mais pobres que devem carregar o peso das soluções para as crises geradas pelo próprio sistema econômico, agora desorientado (quem reergue um país após uma crise?).

Diante desta situação, é mais urgente do que nunca recordar a mensagem do Magnificat que é a vitória do amor sobre a violência. Se o testemunho dos mártires continua a ter tal impacto em todo o mundo, é porque eles encarnaram esta mensagem: presos entre duas formas de violência – a violência física e a violência moral que fere nossas consciências –, recusaram-se a escolher uma das duas. Em vez disso, eles escolheram o terceiro caminho, que é o Caminho que Jesus indicou: mostrar o mesmo amor a todas as pessoas, estejam elas de um lado ou de outro dessa divisão. Eles pagaram por isso com suas vidas, assim como aconteceu com Jesus de Nazaré.

A Mulher do Apocalipse se retirou para o deserto. Os monges fazem o mesmo quando entram no mosteiro. Quando os primeiros monges se retiraram para o deserto, não foi, a princípio, para encontrar ali uma tranquila intimidade com Deus, mas para continuar ali, com Cristo e sua Mãe, a luta contra as forças do mal: aquelas forças que encontramos presentes em cada um de nossos corações assim que nos é dada a graça da lucidez. Com Maria, continuemos esta luta para também sermos assumidos, como ela e com ela, na glória e na bem-aventurança de seu Filho, o Primogênito. Então, como João Batista no ventre de sua mãe, pularemos de alegria e, como Maria, cantaremos um eterno “Magnificat“.

Dom Martinho do Carmo, osb

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