Homilia para o 4º Domingo do Tempo Comum – Ano B,
proferida a 31 de janeiro de 2021
por Dom Martinho do Carmo OSB

Mc 1,21-28

Introdução

Caros irmãos e irmãs, hoje Cristo dirige-nos o seu grito enérgico de autoridade: “Cala-te e sai dele!” (Mc 1,25). Ele diz isso aos espíritos malignos que vivem em nós e que não nos deixam ser livres, tal como Deus nos criou e desejou.

“Cala-te” é o “exorcismo” que Jesus profere sobre o mal. Talvez seja por isso que Nosso Pai São Bento deseja tanto que seus monges busquem viver o silêncio. Como diz o ditado “O bem não faz ruído; o ruído não faz bem”. O mal não pode conviver com o bem. A vida santa não permite o pecado.

Homilia

A questão que perpassa esta página do Evangelho é a da identidade de Jesus. Ele acabou de começar sua pregação na Galiléia, anunciando a vinda do Reino de Deus. Já chamou quatro discípulos para caminharem com ele: Simão e André, Tiago e João. Mas até agora, Jesus não disse nada sobre sua identidade.

Em Cafarnaum, ninguém o conhece. Mas o fato de ele estar acompanhado por quatro discípulos, certamente chama a atenção dos habitantes da cidade. Como era costume, no dia de sábado na sinagoga, um homem lia a Torá ou o pergaminho de um profeta e comentava a Escritura lida. Tudo sugere que hoje essa honra havia sido dada Jesus. Finalmente! É a oportunidade de ouvi-lo, de saber quem ele é, de desvendar o mistério da sua pessoa.

Não sabemos sobre o conteúdo dessa pregação de Jesus, mas somos informados de que “todos ficavam admirados com o seu ensinamento, pois ensinava como quem tem autoridade, não como os mestres da Lei” (Mc 1,22). O que imediatamente salta a vista é que sua autoridade não vem do poder religioso. Jesus se distingue dos escribas e dos mestres da lei cujas palavras ninguém presta atenção, pois eles se contentam em dizer: “Assim está escrito” ou “Isto é Palavra do Senhor”, mas sua palavra não permite aproximar-se de Deus, enquanto que o ensinamento de Jesus eleva a alma daqueles que o ouvem. A sua palavra brota do seu ser e, quando fala de Deus, sua palavra exprime a íntima comunhão que ele tem com o Pai, no Espírito Santo. Sua Palavra é verdade.

E essa é a novidade. Jesus crê naquilo que diz porque Jesus é aquilo que diz. Ele não impõe. Ele é. Ele não diz: “Eu conheço a verdade, eu conheço o caminho, eu ensino a vida”, mas: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 5). Ele vive tudo o que diz e diz apenas o que é. E tem mais: Jesus fala como um homem que conhece o homem.

É por isso que seus ouvintes se sentem unidos à sua Palavra. Sua Palavra age com autoridade porque, etimologicamente, “autoridade” vem de “autor”, e assim sua palavra cria, faz crescer algo naqueles que a ouvem. Ela sacode suas entranhas, liberta suas almas e, doravante, querem viver desta sua Palavra. Mais adiante Jesus dirá: “Se alguém me ama, guardará minha palavra, e o meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada” (Jo 14,23). Portanto, a Palavra de Jesus já é um encontro com Deus. Por isso Marcos, logo no início de seu evangelho nos chama a este salto na fé: reconhecer que Jesus é o Enviado do Pai, o Verbo feito carne.

Entretanto, um incidente na sinagoga interrompe essa revelação. Um homem possuído por um espírito mau grita: “Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos destruir? Eu sei quem tu és: tu és o Santo de Deus” (Mc 1,24). Mas este homem que parece estar confuso sobre si mesmo. Ele diz “nós” e depois diz “eu”. O espírito mau confundiu totalmente a identidade deste homem. O mistério do Evangelho era sobre a identidade de Jesus, mas agora é o homem que não sabe mais quem ele é. Tudo nele está confuso porque ele permitiu que o mal entrasse em seu coração. Já perguntava o salmista: “Senhor, que é o homem, para dele assim vos lembrardes?” (Sl 8,5). Isso porque o ser humano em busca de Deus está, na verdade, em busca de sua própria identidade.

Mas uma luz vem sobre esta altercação entre Jesus e o homem possuído. Ele parece saber muito bem quem é Jesus. E este é o grande paradoxo, porque é o espírito mau do evangelho quem primeiro reconhece e revela a identidade de Jesus. Aquilo que é Santo é desmascarado pelo que é impuro e mau, porque a impureza e maldade não suportam a santidade. Jesus está exatamente no coração do combate que veio travar na terra. “Que queres de nós?” ou, literalmente: “o que há entre nós e ti?” (Mc 1,24), diz o espírito mau, como quem dissesse: “Não existe nada entre nós, porque você está aqui?”. Jesus, portanto, veio travar na terra o combate que renova a aliança rompida entre o ser humano e Deus. Mas eis que algumas forças recusam submeter-se a Deus e fazem obstáculo à esta Nova Aliança.

Tudo o que no ser humano não é filial a Deus impede uma relação de vida entre o Criador e sua criatura. “Toda a criação espera ansiosamente o momento de se revelarem os filhos de Deus”, diz São Paulo. “Vieste para nos destruir?”, treme o espírito mau, porque sabe que Jesus saiu do seio do Pai para tornar o homem filho de Deus. Ele veio derrotar as forças do mal, reerguer a humanidade e restaurar sua liberdade.

Foi o que aconteceu na sinagoga de Cafarnaum. Jesus retoma a posse do coração humano, ordenando ao espirito impuro: “Cala-te e sai dele!” (Mc 1,25). O que, segundo São Jerônimo, “É como se dissesse: Sai de minha casa; que fazes tu na minha habitação? Eu quero entrar, por isso, cala-te e sai do homem. […] Deixa esta morada que preparei para Mim! O Senhor Deus reclama a sua casa, sai deste homem[1]’”.

Se, por um lado, este combate contra as trevas revela a identidade de Jesus, ele, por outro lado, impõe silêncio com relação à sua pessoa. Porque o acesso à fé necessita de tempo, de uma descoberta progressiva e pessoal. Será necessário percorrer todo o Evangelho para finalmente ouvir da boca de um pagão que está diante da cruz: “Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus” (Mc 15,39).

Por ora, as Palavras causam apenas admiração. A multidão admirada pergunta: “O que é isto?” (Mc 1,27). Assim como os Hebreus diante do maná dado no deserto, a multidão pressente que Deus está agindo diante de seus olhos. Jesus é o novo maná que satisfaz esses homens e mulheres que esperam a salvação. Ele alimenta com sua Palavra e revela sua identidade a quem está ferido pelo mal.

E vejam que “coincidência”: É nesta mesma sinagoga de Cafarnaum que o próprio Jesus revelará sua identidade, dizendo: “Eu sou o Pão da Vida. Vossos pais comeram o maná no deserto e, no entanto, morreram. Eu sou o pão vivo descido do céu” (Jo 6,35.49.51). Nesta Eucaristia Jesus vem visitar-nos no mais íntimo de nós mesmos. Deixemo-lo ter autoridade sobre nossa vida. Deixemo-lo ser “autor”, criar algo novo dentro de nós. Alimentados d’Ele, o Pão da Vida, o novo maná, sairemos de nosso êxodo e provaremos a alegria de ser um novo homem, uma nova mulher, filhos no Filho de Deus, chamados à liberdade em seu Reino.

Amém!


Após a comunhão

Caros irmãos e irmãs, desde o início da quarentena na Itália, quando a missa no Vaticano era celebrada sem a participação dos fiéis, o Papa Francisco sempre convidava àqueles que não podiam comungar sacramentalmente a fazer a Comunhão espiritual com a seguinte oração:

Meu Jesus, eu creio que estais presente no Santíssimo Sacramento do Altar. Amo-vos sobre todas as coisas, e minha alma suspira por Vós. Mas, como não posso receber-Vos agora no Santíssimo Sacramento, vinde, ao menos espiritualmente, a meu coração. Abraço-me convosco como se já estivésseis comigo: uno-me Convosco inteiramente. Ah! não permitais que torne a separar-me de Vós!

Papa Francisco


[1] São Jerônimo, Homilias sobre o Evangelho de Marcos, n.º 2, disponível em < https://evangeliodeldia.org/PT/gospel/2021-01-12 >, acesso a 30/01/2021.

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