Homilia para o 1º Domingo da Quaresma,
proferida a 1º de março de 2020
por Dom Martinho do Carmo OSB

Mt 4,1-11

Introdução

ELE não tem pecado! O Verbo feito carne, o Filho de Davi, o Santo de Deus não pode pecar! Jesus de Nazaré é santo, da santidade do próprio Deus. Tudo o que ele é e tudo o que faz é santo. Da parte do pecado nada pode atingi-lo. Ele não pode querer o pecado, embora possa padecer sob o pecado de outros, mas também pode tirar o pecado como um cordeiro imaculado. Mesmo assim, diz-nos o Evangelho, Ele foi tentado como nós e por nós, para nossa instrução e nossa libertação. Mas, o que significa “tentação”, na vida de Jesus e nas nossas vidas? Este é um dos mistérios que a liturgia de hoje pode nos revelar.

Homilia

Irmãos e irmãs, que sentido tem para nós a tentação?

Em primeiro lugar, ser tentado, significa ser submetido à provação. Nesse sentido, Deus nos prova, Ele permite que sejamos provados afim de verificar a autenticidade de nosso amor e de nossa fidelidade. Às vezes dizemos que, “é na provação que se reconhecem os verdadeiros amigos”. Mas não é que Deus nos deseje o mal: Ele serve-se dos acontecimentos de nossas vidas, de modo que, sendo provados, sejamos fortalecidos e confirmados no bem. Nesse sentido, a tentação de provação é, para nós, com Graça de Deus, uma ocasião e um meio de santificação, de crescimento e de maturidade no amor. Ora, toda vida cristã é um combate espiritual: uma experiência pela qual podemos provar a Deus, e talvez a nós mesmos, que O amamos não apenas de boca, mas de coração e em toda a nossa vida. Aprendemos assim a nos colocarmos em confiança e abandono à Providência divina.

Em seguida, ser tentado, também significa ser solicitado por ou para um mal, por um falso bem, um bem apenas aparente, mas que nos agrada e atrai, que solicita nosso desejo e estimula nossa afeição. Essa tentação tem o rosto de sedução e visa conduzir ao pecado. Podemos imaginar que essa tentação seja grosseira ou vulgar, mas na maioria das vezes é sutil e até nos é satisfatória, misturando-se com colorações agradáveis. Deste tipo de tentação, nem o próprio Cristo escapou. Ou melhor, o próprio Cristo QUIS ser tentado! Entretanto, n’Ele não havia nenhuma inclinação ao pecado, nenhuma cumplicidade secreta. Nesse sentido, parece que o pecado não tem poder sobre ele. Mas, se é assim, o que significa “ser tentado”, no caso de Jesus, se a tentação não tem como surtir efeito sobre ele? Ora, é preciso lembrar que o mal começa quando nasce um desejo ou uma atração desordenada que nos inclina a escolher esse bem aparente, o falso bem, que muitas vezes é particular e imediato e por isso cega nossa capacidade de emitir juízo, afastando-nos daquilo que, na realidade, constitui o nosso verdadeiro bem. Nossa consciência, seguindo as inclinações de um coração ainda imperfeitamente retificado, fecha-se à luz da verdade e do verdadeiro bem moral. Bom, se Cristo submeteu-se à tentação, isso não significa que ele tenha capacidade de desejar um mal ou um bem aparente, mas ele poderia ter experimentado este ou aquele bem particular – a riqueza, o poder, a autoridade – que, em si, são bens legitimamente desejáveis. Afinal de contas, toda riqueza, todo poder e toda autoridade não são, por si só, males, mas bens, ou meios, cujo valor é verificado através de seu fim, ou por meio da maneira com as quais são adquiridos ou utilizados. O demônio sabia muito bem o que estava fazendo tentando Jesus desta forma: ele é astuto no uso da inteligência que, embora tortuosa, é lógica.

Deus não tenta, mas permite que sejamos tentados pelo demônio. É por meio dele que o pecado entra no mundo. Ele é o Tentador por excelência. E tudo aquilo que no mundo, por sua instigação, vive à sua imagem, torna-se como ele, nosso tentador. A tentação nasce do exterior, mas entra em nós porque encontra uma secreta conivência, uma secreta aceitação da alma, à qual chamamos de “inclinação para o mal”, que permanece em nós mesmo após o Batismo nos lavar do pecado original. Mas isso permanece em nós para o belo combate e para o triunfo do bem. E nós sabemos muito bem como é fácil mudar para o lado do mal: primeiro, um pensamento simples que surge em nossa mente, seguido de uma complacência interior, um movimento desordenado e, finalmente, o consentimento. Como diz a “Imitação de Jesus Cristo”: O inimigo invade toda a alma quando, desde o princípio, não se lhe oferece resistência[1]. A tentação não é um pecado, mas torna-se pecado quando há consentimento. Sucumbir à tentação é enfraquecer nossa vontade, é ser despojado de nossa liberdade. Para remediar isso, é aconselhável “fugir das ocasiões de pecado”[2].

“Muito bem, meu caro Dom Martinho! De fato, ‘fugir das ocasiões de pecado’ é agir com bom senso. Mas, para seguir à risca este seu conselho, seria necessário renunciar a tudo e nada ver, nada ouvir, nada sentir, nada tocar…”

Não, caros irmãos e irmãs, não é preciso deixar de viver para não cair em tentação. O Evangelho nos indica as boas armas do combate interior: a oração cotidiana e confiante, a ascese e o jejum. O jejum de coisas fúteis e inúteis, mas também de muitas coisas necessárias que invadem, sobrecarregam e monopolizam nossas vidas: o incessante uso do smartphone, o computador ligado a todo o tempo, a televisão que mata o tempo e os relacionamentos, etc. Em suma, por meio da oração e da ascese, é possível redescobrir o gosto pelo silêncio e pelo recolhimento [hospedaria]. Oração, jejum  e também a esmola: dar esmola do meu tempo dando atenção aos pais ou amigos esquecidos e negligenciados. E, enfim, a humildade, sem a qual nunca progrediremos, e que, geralmente, só a alcançamos por meio das provações que a vida nos propõe, por mais dolorosas que sejam.

Para terminar, um último adendo a respeito justamente da humildade: As tentações têm, ao menos, essa virtude de nos ensinar sobre nós mesmos mais do que qualquer livro: geralmente nós sabemos o que podemos fazer; mas quando a tentação, a provação, nos mostra quem realmente somos, e onde está realmente o desejo de nossos corações. Então, Senhor Deus, vós que sois o vencedor do demônio e de todo o mal, “não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal”. Amém!

Epílogo: O Tempo da Quaresma

Caros irmãos e irmãs, marcado pelas cinzas desde quarta-feira, entramos na Quaresma de 2020. Mas a Quaresma não é uma triste prisão que aprisionar nosso ser e nosso viver: ela é o grande convite para subirmos a Jerusalém, onde teremos um encontro com o Messias – a quem, com os nossos pecados, nós pregamos, crucificamos, mas também glorificamos por sua Ressurreição. Temos um compromisso com Cristo, o Salvador do mundo!

Subir para Jerusalém, é um caminho e difícil, mas essa é a nossa resolução fundamental, pois trata-se de nossa vida, nossa morte, e nossa salvação. E todos os domingo deste tempo da Quaresma serão uma espécie de acampamento para continuar nossa subida. 

Eis que o caminho está aberto diante de nós após o deserto da Tentação neste primeiro domingo da Quaresma. O segundo encontro, no segundo domingo, será no Monte Tabor, onde Jesus transfigurado nos dará um gostinho da luz da glória e da força de uma vida destinada a ressuscitar. Teremos em seguida, no terceiro domingo, o encontro com a Samaritana para descobrir o dom de Deus: o Espírito Santo em quem adoramos o Pai em verdade! Com a cura do cego de nascença, no quarto domingo, nós reconheceremos em Jesus aquele que abre os nossos olhos da fé para o verdadeiro Deus. Este Pai que, no 5º domino, ressuscitará Lázaro após a poderosa oração de Jesus, dando-nos assim as primícias da verdadeira vida. E, finalmente, no Domingo de Ramos, entraremos em Jerusalém para a grande reunião da Semana Santa, onde Jesus será crucificado na colina do Gólgota. No Monte das Oliveiras, Cristo vencedor da morte, subirá ao Céu levando nossa humanidade para o Pai, como uma ovelha perdida, mas salva pelo Bom Pastor.

Eis irmãos, a caminhada deste tempo quaresmal: façamos, por amor a Deus, juntos esta caminhada, em todos os domingos! Pois, como rezamos na oração eucarística, isso “é nosso dever e nossa salvação”!


[1]E quanto mais alguém for indolente em lhe resistir, tanto mais fraco se tornará cada dia, e mais forte o seu adversário”. Cf. Tomás de Kempis, Imitação de Cristo, XIII,5, disponível em <http://imitacaodecristo.50webs.com/imitacao_de_Cristo.html>, acesso a 29/02/2020.

[2] Cf. “Oração do penitente 1”, em Ritual da Penitência, 45, ed. Loyola, 1999, p. 36. Versão portuguesa disponível em <http://www.liturgia.pt/rituais/Penitencia.pdf>, acesso a 29/02/2020.

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