Homilia para o Quinta-Feira Santa na Ceia do Senhor – Ano B,
proferida a 1º de abril de 2021
por Dom Martinho do Carmo OSB

Êx 12,1-8.11-14; Sl 115; 1Cor 11,23-26; Jo 13,1-15

Introdução

Caros irmãos e irmãs, Jesus hoje se despede dos discípulos celebrando a páscoa judaica. Mas, fazendo isso, Ele une seu drama pessoal à história sagrada de seu povo. Seus gestos fazem disso memória e renovam profundamente sua validade: “Este cálice é a nova aliança, em meu sangue. Todas as vezes que dele beberdes, fazei isto em minha memória” (1Cor 11,25). Abrir a celebração do Tríduo Pascal em nosso contexto tão estranho e até opressor de pandemia, é também unir o nosso drama ao de Jesus, ecoando o drama dos Hebreus – oprimidos e depois confinados em suas próprias casas – quando a morte causada pela “praga exterminadora” passava e atingia os primogênitos egípcios, mas que, enfim, foram libertos pelo poder de Deus.

Homilia

Caros irmãos e irmãs, já faz mais de um ano que recebemos um SINAL de nível global, que tocou – e ainda toca – a cada um de nós, que tocou nossas vidas, tocou nossos corpos. Mas não podemos nos deixar enganar quanto a qualquer tipo de sinal: todos eles remetem ao Sinal dos sinais, o Sinal Jesus Cristo, o sinal da presença de Deus no meio de nossas piores provações.

Nós ouvimos a primeira leitura, do livro do Êxodo, revestida numa atmosfera opressora, uma atmosfera que, normalmente, seria estranha para nós, mas que, no último ano foi-nos muito familiar: uma “praga exterminadora” que atingirá um povo, e um povo que permanecerá confinado, cada um em sua casa, compartilhando uma refeição singular, família por família, casa por casa. O cordeiro sacrificado para esta refeição sinaliza a pertença ao povo escolhido, e representa a oferta que eles farão fazer em memória de sua libertação. Em cada casa o primogênito será ferido, mas o cordeiro ocupará o lugar daquele que estava para morrer: será o preço da sua redenção. E Moisés declara àquele povo confinado que: “Este dia será para vós uma festa memorável em honra do Senhor” (Ex 12,14).

Nós ouvimos igualmente São Paulo, na segunda leitura, fazer-nos a narrativa da Instituição Eucarística, a mais antiga que chegou até nós. Era por volta do ano 52, cerca de apenas vinte anos após os eventos da Páscoa cristã. Este é o único relato que narra, duas vezes, esta palavra de Cristo: “Fazei isto em minha memória” (1Cor 11,24.25). Este mandamento do Senhor foi a parte central do primeiro anúncio do Evangelho feito à Igreja primitiva.

E o Evangelho? O Evangelho não fala da refeição em si, mas do gesto que o Senhor deu como exemplo naquela Ceia. No auge da crise, poucas horas antes de sua morte, Jesus propõe um gesto completamente irrisório, mas que derruba nossas referências: o mestre faz o papel do escravo e lava os pés de seus discípulos. “Agora, não entendes o que estou fazendo; mais tarde compreenderás”, disse Jesus ao inconformado Pedro. Jesus age como o mestre que quer dar sentido ao drama que está para surgir ou, mais exatamente, quer torná-los conscientes do que vai acontecer. Jesus sabe que, em meio a uma crise, todos ficam desorientados e que a razão não ajuda muito. Porém, Jesus não explica as coisas para dar uma compreensão imediata, mas orienta a todos para seu gesto, para o seu Corpo. Ele deseja, por um lado, sensibilizar seus discípulos e, por outro lado, mostrar-lhes uma direção a seguir: “Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz”.

Seu gesto traduz tanto a intimidade pessoal e delicada que tem para com todos quanto a profundidade do Mistério que é capaz de guiar toda a história da humanidade. Ele para diante de cada um, olha-os, toca-os delicadamente, lava-os, enxuga-os. Sua presença é uma total atenção ao outro. Poderíamos nos perguntar: “Por que ele perde esse tempo quando sabe que lhe resta tão pouco?” Ora, é porque Jesus tem uma única missão: manifestar o mistério de seu Pai, o amor que habita o seu ser, a luz de seus olhos, seu sopro de vida, a pulsação de ternura em seu coração. Jesus quer que os seus toquem e sintam que Deus é bom, é doce, que Ele é um dom. Ele quer, inclusive, dar-se em comida e bebida para que se tenha concreta experiência de tudo isso. Ele sabe que toda crise é “apokalúpsis” – no sentido grego do termo –, pois a crise “desvela uma realidade”; mas ele sabe que, acima de tudo, essa realidade é o amor de Deus, pois o seu amor enche o universo, e nada escapa à bondade do Pai. Só o medo, tão compreensível na hora da crise, é que nos impede de ver e perceber esse amor. É preciso, então, fazer a passagem pela crise – pois este é significado de Páscoa – para enfim começar a compreender e perceber este amor.

Portanto, Jesus é o Servo, o escravo doméstico humildemente ajoelhado, silencioso e manso como o cordeio que se deixa abater para a Ceia em que se dá como alimento, e cujo sangue nos protege, nos liberta, nos sacia e nos reúne como irmãos. A razão é, enfim, superada pelo mistério. Jesus cura e nutre nosso corpo. Ele quer, desta forma, atrair a nossa atenção e fixar firmemente nossa intenção, para orientar e dar sentido à nossa vida, mesmo em meio ao sofrimento. Jesus, no meio da crise, toca o corpo dos seus, dá o seu próprio Corpo como alimento unindo-o ao corpo dos seus, forjando assim seu Corpo Eclesial, o Corpo Místico de Cristo, a Igreja. Meu corpo, dom de Deus, eu o recebo para torná-lo instrumento de Deus. Meu corpo, pelo qual comungo o Corpo de Cristo e dele torno-me membro. A Igreja, Corpo de Cristo, onde Deus se doa para nos unir e transmitir-nos a sua paz. Caros irmãos e irmãs, hoje, tanto sacerdotes como leigos, somos convidados a retornar às fontes do nosso sacerdócio batismal, especialmente neste momento em que muitos não podem celebrar junto conosco a Eucaristia. Este jejum de sacramentos que muitos padecem convida-nos a voltarmos ao mistério do corpo habitado pelo Espírito Santo, a lermos a Palavra da Vida, a compartilhá-la em família, a celebrar a Liturgia das Horas e – porque não? – redescobrir, como no Lava-pés, a liturgia doméstica do serviço aos que nos são mais próximos, em honra ao Espírito Santo que habita em nós. Assim como fez São Leônida, o pai de Orígenes, que beijou o peito de seu filho enquanto ele dormia por respeito ao Espírito Santo presente nele. Em outras palavras, como no tempo dos Hebreus, que em cada casa possa ser celebrada a presença deste único Cordeiro Pascal que alimenta e cura. E nós, monges e demais fiéis aqui presentes, ao celebrarmos esta Ceia do Senhor, identifiquemos, por meio da Cruz, o nosso altar com a mesa da refeição comum onde muitas famílias confinadas celebram o sacrifício diário da doação de si. Pelo Sinal da Cruz, identifiquemos nosso altar com tantos leitos hospitalares onde profissionais de saúde imolam a própria vida em serviço e comunhão com tantos cordeiros inocentes que expiram. Deus, que é amor, fez exatamente isso conosco. E é esse amor que Cristo nos comunicou. E é por isso que a Eucaristia é o maior Sinal de amor.

Amém!


Após a comunhão

Caros irmãos e irmãs, desde o início da quarentena na Itália, quando a missa no Vaticano era celebrada sem a participação dos fiéis, o Papa Francisco sempre convidava àqueles que não podiam comungar sacramentalmente a fazer a Comunhão espiritual com a seguinte oração:

Meu Jesus, eu creio que estais presente no Santíssimo Sacramento do Altar. Amo-vos sobre todas as coisas, e minha alma suspira por Vós. Mas, como não posso receber-Vos agora no Santíssimo Sacramento, vinde, ao menos espiritualmente, a meu coração. Abraço-me convosco como se já estivésseis comigo: uno-me Convosco inteiramente. Ah! não permitais que torne a separar-me de Vós!

Papa Francisco

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