HOMILIA PARA A NOITE DE NATAL (Lc 2,1-14)

D.Paulo DOMICIANO, OSB

A página que acabamos de ouvir não é uma fábula ou um conto para crianças. O evangelista Lucas tem o cuidado de localizar este evento dentro do seu contexto histórico, em um lugar preciso, entre pessoa reais, justamente para não cairmos neste tentação de reduzir o evento do nascimento de Jesus a um mero conto de fadas. Mas além de tudo, esta é uma página do Evangelho, isto é, da Boa nova. São os anjos que anunciam aos pastores e a nós hoje reunidos a grande boa notícia: “Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor”.

O nosso Salvador nasceu! O Filho do Deus eterno se fez um de nós, entrando no tempo e assumindo uma face para que possamos contemplá-lo. Justamente porque Ele assumiu um rosto, desde o início do cristianismo, a Igreja representa esta face salvadora através das santas imagens, os ícones. Cristo é a imagem/ícone do Deus invisível. Contemplando a sua face e seus mistérios, entramos em comunhão com Ele e com o Pai na unidade o Santo Espírito.

Há 800 anos São Francisco de Assis, que amava de modo particular o Natal, começou a recriar o nascimento de Jesus através do presépio. Ele dizia “Desejo representar a memória daquele Menino que nasceu em Belém: ver o máximo possível com meus próprios olhos corporais o desconforto das necessidades de seu filho, como ele ficou em uma manjedoura, e como ele descansou no feno.” Através da imagem Francisco nos propôs a contemplação do mistério da Encarnação do Filho de Deus.

Aqui no mosteiro nós não introduzimos o menino Jesus no presépio, mas o ícone do Natal de Nosso Senhor. Assim como o presépio, o ícone nos ajuda a contemplar e participar através dos olhos daquilo que celebramos hoje. Pois, como rezamos no Prefácio do Natal, “reconhecendo a Jesus como Deus visível a nossos olhos, aprendemos a amar nele a divindade que não vemos” (Prefácio de Natal). Sim, contemplando as santas imagens do Salvador, que se apresentam a nossos olhos, podemos entrar em comunhão com sua divindade invisível e sermos transformados por Ele.

O santo ícone da Natividade sintetiza, como uma página do Evangelho, este mistério indizível que celebramos. Ao centro vemos o menino e sua mãe. Tudo gira ao redor de Cristo, como um círculo com seus raios. Os anjos ao alto estão unidos aos homens da terra para lhes anunciar o nascimento do Salvador. Não há separação entre céu e terra, como também dizemos no Prefácio: “Por isso, com os Anjos e Arcanjos, os Tronos e as Dominações e todos os coros celestes, entoamos o hino da vossa glória, cantando a uma só voz”.

A direita vemos um pastor que toca uma trombeta, anunciando ao mundo a sua descoberta. O pobre pastor torna-se um arauto da Boa nova. À esquerda temos os magos do Oriente que, guiados pela estrela, vão adorar o Rei Jesus. Pastores e reis estão no mesmo nível diante de Cristo. As diferenças que no mundo estabelece são transformadas em igualdade.

Abaixo, à esquerda, vemos José pensativo, sendo tentado pelo demônio na figura de um velho pastor, um falso pastor, como irá nos alertar o próprio Jesus. José é tentado a deixar Maria, mas em sonho o anjo lhe assegura que a concepção de Maria é obra do Espírito Santo e então ele acolhe Maria e o menino como esposo e pai. À direita, ainda na parte inferior do ícone, temos duas mulheres que cuidam do banho do recém nascido. A fonte se parece com uma pia batismal, para significar que Cristo, entrando nas águas, as santificam e faz com que sejam capazes de nos purificar dos pecados; é uma imagem que pré-anuncia o Batismo no Jordão.

Ao centro está Maria, deitada sobre um manto de púrpura, como uma rainha. Ela é a mãe do Rei e Salvador. Tem o aspecto de recolhimento e silêncio, como o Evangelho de Lucas nos testemunha (cf. Lc 2,19). Ao lado da manjedoura temos um boi e um asno, simbolos do povo judeu e do povo grego, pois Cristo vem para salvar e alimentar a todos.

Jesus é colocado em uma manjedoura, o lugar que serve para alimentar os animais. É sem dúvida um símbolo da Eucaristia, pois Ele vem para ser o nosso alimento.

O menino está dentro de uma gruta escura, símbolo das trevas desse mundo. As rochas que emolduram toda a cena representam a dureza dos corações e desse mundo para quem Ele veio, mas que não o acolheu (cf. Jo 1, 11). Mas é interessante notar que no ícone é a luz que predomina e banha tudo. Esta luz que “brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram dominá-la” (Jo 1, 5). No meio da dureza das rochas também broram árvores, simbolo da vida e do paraíso que voltam a germinar no mundo.

Finalmente, contemplamos o menino, que está na manjedoura, mas que, curiosamente, se parece com um altar ou com um túmulo.  Isso nos recorda que a Natividade é o início do Mistério Pascal de Cristo, do seu esvaziamento. Como na Paixão e Morte, Cristo aqui aparece enfaixado, nos remetendo já à sua sepultura. É numa noite que Jesus nasce e será na noite do Sábado santo que Ele ressuscitará.

Hoje Cristo entra no tempo e o santifica, a história humana não é mais a mesma, pois Deus está conosco! É um de nós!

Na Ressurreição Cristo entra na eternidade e arrasta com Ele toda a criação e toda a humanidade redimida, fazendo de nós filhos de Deus, como Ele. Ele, que é a imagem, o ícone do Pai , faz com que sejamos novamente a imagem de Deus.

Como neste ícone, Cristo precisa ocupar o centro de nossas vidas, de nosso mundo. É no meio de nossa vida marcada pela secura, pela dureza, pelas trevas, que Ele vem nascer hoje. Entre nossos limites, nossos pecados, nossa pobreza… para nos libertar e transformar com sua Luz bendita. Hoje é o presépio de nosso coração que Ele busca para nascer. Tenhamos a coragem e a simplicidade para acolhê-lo. Que a Virgem Maria, mãe do silêncio e da ternura, nos ensine a acolher o Verbo da Vida em nosso coração, e nos ensine também a comunicar a alegria que inundou os pastores naquela noite santa a todos que estão mergulhados na falta de esperança, na falta de amor e de paz.

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