(Lc 4,1-123) / 2022

Dom Paulo DOMICIANO, OSB

Na Quarta-feira de Cinzas iniciamos nosso itinerário de conversão, que nos conduz hoje, neste primeiro domingo da Quaresma, ao deserto, junto de Jesus. Os 40 dias da Quaresma fazem referência aos 40 dias que Jesus esteve no deserto que, por sua vez, se relacionam com os 40 anos que o povo de Israel esteve no deserto a caminho da terra prometida.

O início do Evangelho nos dá a direção que devemos tomar para compreender esta entrada no deserto. “Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão”. Portanto, para lermos/compreendermos a entrada de Jesus no deserto, devemos notar que este episódio está diretamente relacionado com o evento do seu Batismo no Jordão.

Depois de ser batizado no Jordão, Jesus entra no deserto “guiado pelo Espírito”, como segue o Evangelho. No Jordão, o Espírito desceu sobre Jesus e Ele ouviu a voz do Pai, que declarou: “Tu és o meu Filho amado, em ti ponho o meu bem-querer” (Lc 3,22). Como meditaremos na Vigília Pascal, o povo de Israel, que saiu da escravidão do Egito, também entrou na água, atravessando o Mar Vermelho, como uma figura do Batismo. Assim, vivenciou a grande ação libertadora operada por Deus e reconheceu a sua eleição como povo escolhido, como recorda esta profissão de fé primitiva, que ouvidos hoje no Livro do Deuteronômio. O Espírito também estava presente nesta travessia do povo sob a imagem da coluna de fogo, que ia à frente deles pelo caminho.

Mas não basta saber que se é povo eleito ou filho de Deus; tanto Israel como o próprio Filho precisam ir ao deserto para serem provados em sua vocação. Sem essa prova, que permite enxergar as coisas como elas realmente são, corre-se o risco de cair na ilusão.

Jesus entra no deserto sem medo, assumindo com determinação esse caminho. Israel, ao contrário, se desespera já nos primeiros passos, às portas do deserto, se revolta e até pensa em voltar atrás. Jesus sabe que não está sozinho; Ele se deixa guiar pelo Espírito. Quantas vezes nós, como Israel, também nos desesperamos diante do deserto das provações. Também ficamos revoltados com Deus e até pensamos em desistir de tudo… Nos esquecemos de olhar para frente, onde Deus está para iluminar e guiar nosso caminho. Ficamos presos aos nossos medos, que nos limitam e paralisam.

No deserto, Jesus é provado em sua identidade de Filho de Deus. Ele acabara de ouvir no Batismo a confirmação de sua intuição mais profunda de que era “o Filho amado do Pai”. Agora, no deserto, o diabo tenta confundi-lo dizendo: “Se és Filho de Deus” faça isso ou faça aquilo. Diabo significa “aquele que divide”, “aquele que separa”; ele tenta, portanto, dividir Jesus interiormente, tenta separá-lo de sua certeza fundamental, baseada na declaração do Pai, de seu projeto, de sua vocação. É isso o que ele faz também com o povo caminhando no deserto quando o faraó se aproxima com seu exército ou quando falta o alimento: será que não seria melhor ter ficado lá onde estávamos? será que não é melhor abandonar esse Deus que nos trouxe para morrer no deserto?

O diabo se aproxima de Jesus com falsas promessas, com sedução, como fez com nossos primeiros pais no paraíso, mas Jesus não se deixa envolver. Diferente de Adão e Eva, Ele não permite que o diabo use as palavras de Deus de modo distorcido. Escolhe sempre a Palavra que vem de Deus e expulsa o tentador. Com isso, Jesus prova que o ser humano, mesmo em sua fraqueza, pode optar pelo plano de Deus, pode dizer não ao mal e, assim, confirmar sua identidade de filho de Deus e não filho da dúvida e da rebeldia.

São Paulo nos lembra na segunda leitura, que a Palavra de Deus está perto de nós, em nossa boca e em nosso coração. Esta Palavra é o próprio Verbo feito carne, Jesus Cristo. Não temos o que temer; Ele está conosco, luta conosco e nos defende. Como cantamos no Salmo 90: “Porque a mim se confiou, hei de livrá-lo e protegê-lo, pois meu nome ele conhece. Ao invocar-me, hei de ouvi-lo e atendê-lo, e a seu lado eu estarei em suas dores”. Por isso, como segue São Paulo, confiando nele, não seremos confundidos.

Como podemos perceber através das Escrituras, descobrir-se Filho de Deus, povo eleito da promessa, não significa estar isento de problemas, conflitos, combates e dúvidas. Hoje, Jesus nos mostra que nós também, assistidos pelo Espírito, podemos entrar no deserto da quaresma e podemos também assumir nossas provas e podemos vencer o tentador, se estivermos alicerçados na rocha da Palavra de Deus, refugiado sob a sua proteção, conscientes de que nada podemos fazer por nossas próprias forças, mas que o Espírito nos fortalece para vencer.

Iniciando esta Quaresma, vamos identificar onde estão as provas que precisamos enfrentar com mais determinação e coragem; ao mesmo tempo, vamos identificar as armas que Deus nos oferece para vencer este combate e, assim, “na alegria do desejo espiritual – como diz Nosso Pai São Bento – esperar a Santa Páscoa” (RB49,7), com o coração aberto e disponível para receber a vida nova do Ressuscitado.

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