Dom Paulo DOMICIANO, OSB

O capítulo 16 de São Lucas nos apresenta duas parábolas que têm como tema comum o uso dos bens. A primeira delas, do patrão e do administrador, ouvimos no último domingo e hoje, temos a parábola sobre o rico e o pobre Lázaro.

Na verdade, esta parábola é estranha, visto que Deus não é sequer mencionado, enquanto geralmente em suas parábolas Jesus quer nos ensinar quem é seu Pai e qual é sua atitude em relação a nós. Penso que uma forma de entrar nesta parábola é observando os contrastes paradoxais que ela nos oferece.

Consideremos os personagens da parábola: há um homem rico e um homem pobre. Nada se diz se o rico era um bom ou mau, nem se o pobre era bom ou mau. O Evangelho nos fala simplesmente de um homem rico que se vestia com roupas finas e fazia banquetes todos os dias, e de um homem pobre, coberto de feridas e sem nada para comer.   Estes dois homens simplesmente vivem um ao lado do outro e se ignoram, sem malícia ou ciúmes. Nada é mencionado sobre a atitude religiosa do rico nem do pobre.

O homem rico não tem nome e representa todos aqueles que se deixaram alienar por sua riqueza.  A sua identidade é a sua riqueza, suas vestes, seus banquetes. Ele não é perverso, mas simplesmente foi inconsciente ao longo de sua vida.  O pobre homem tem um nome, Lázaro, cuja etimologia é ‘el’Azar, que significa “Deus ajuda”.  Isto é provavelmente um pouco irônico, já que Deus não o ajudou muito aqui na terra.

Com sua morte, o pobre homem, que estava deitado no chão, foi levado por um cortejo de anjos para junto de Abraão. Por sua vez, quando o homem rico morre ele é enterrado; a terra, que era seu apego, se torna a sua morada definitiva. Contudo, suas riquezas, suas vestes e toda a sua comida, desaparecem; não lhe resta sequer uma gota de água para refrescar sua sede.

Durante sua vida, o rico pensou somente em si mesmo, sem se dar conta de que havia alguém com necessidades em sua porta, alguém com quem poderia partilhar um pouco de sua riqueza. Com isso, ele cavou um fosso ao seu redor, um abismo que se torna intransponível depois da morte.

A parábola não pretende nos falar da vida depois da morte, mas de como devemos levar a vida aqui neste mundo, mostrando que a vida eterna começa a ser construída a partir de nossas escolhas aqui nesta terra. A parábola não condena o fato de um homem ter riquezas, mas denuncia a indiferença em relação ao próximo, em relação àquele que muitas vezes está bem próximo de nós, à nossa porta. Seu pecado não é ser rico, mas fazer de sua riqueza um fim, que cava ao seu redor um abismo de indiferença e insensibilidade. Até o cachorro, que lambe as feridas de Lázaro, manifesta mais ternura do que o homem rico.  

A riqueza se torna um perigo, causa de condenação, quando ela é acumulada, não é partilhada, nos fazendo cegos à necessidade do próximo. Com isso, somos convidados a verificar o que temos feito de nossos tesouros, lembrando que todos nós somos ricos de alguma coisa… riqueza não é só dinheiro, não é só comida, mas também talentos, capacidades, tempo, atenção… Por isso corremos o mesmo risco de nos fecharmos em nós mesmo, pensando em nos preservar, nos poupar, sem nos dar conta de que podemos ajudar alguém com aquilo que temos e somos.

Na segunda parte da parábola o rico, entregue aos sofrimentos, suplica por seus irmãos para que sejam poupados do mesmo destino; ele pede para que Abraão envie Lázaro até eles para tirá-los de seu torpor.  Abraão responde: É inútil.  Eles estão inconscientes.  Eles têm Moisés, ou seja, a Lei, e os Profetas. “Se não escutam a Moisés, nem aos Profetas, eles não acreditarão, mesmo que alguém ressuscite dos mortos”.

Evidentemente, entre nós aqui hoje, ninguém vive no esplendor deste homem rico da parábola; do mesmo modo, provavelmente, também nenhum de nós aqui vive tal miséria, como Lázaro.  Portanto, talvez para nós os personagens mais importantes a serem observados nesta parábola são justamente estes cinco irmãos do homem rico, do qual se: “Eles têm Moisés e os profetas”.  Esses cinco irmãos ainda estão sobre a terra e representam todos nós, que temos não só Moisés e os Profetas, mas também o ensinamento de Jesus e seu Evangelho, e ainda temos tempo para sair de nosso torpor e agir de modo diferente. 

Como disse, talvez não sejamos ricos de bens, mas somos ricos de muitas outras coisas. À nossa porta também há sempre alguém nos estendendo a mão, necessitado não somente de pão, mas de atenção e de cuidado.

De fato, hoje, mais do que nunca, existe um fosso entre ricos e pobres – um fosso que está se alargando o tempo todo. Em 2013, em umas de suas primeiras viagens, o papa Francisco foi à Lampedusa (esta pequena ilha onde chegam milhares de refugiados, que deixam seus países fugindo da guerra ou da miséria) e disse: “A cultura do bem-estar, que nos leva a pensar em nós mesmos, torna-nos insensíveis aos gritos dos outros, faz-nos viver como se fôssemos bolas de sabão: estas são bonitas mas não são nada, são pura ilusão do fútil, do provisório. Esta cultura do bem-estar leva à indiferença a respeito dos outros; antes, leva à globalização da indiferença. Neste mundo da globalização, caímos na globalização da indiferença. Habituamo-nos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa!”

Que o Evangelho de hoje nos ajude a sairmos de nossa inconsciência e de nossa indiferença, sendo mais lúcidos e mais sensíveis à realidade das pessoas que nos rodeiam, deixando nos interpelar para que possamos fazer a diferença na vida de alguém. Diante das estruturas de morte e de opressão em que vivemos, sejamos aqueles que constroem uma rede de compaixão.

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