Homilia do 14º Domingo do Tempo Comum – C
Dom Afonso VIEIRA, OSB
Irmãos e irmãs, às vezes temos a ilusão de que os Evangelhos são uma história contada ao Jesus ser flagrado no local, porém os Evangelhos são a vida e as ações de Jesus, escritas pelas comunidades cristãs após a ressurreição. Além disso, é bastante difícil obter um relato em primeira mão de São Lucas, porque Lucas – um fiel companheiro de Paulo – não era um membro dos Doze. Ele escreveu seu Evangelho para cristãos de cultura grega.
Assim os Evangelhos foram escritos por comunidades cristãs para comunidades cristãs, tempos depois da ressurreição, o que influencia a leitura da vida de Jesus. E, às vezes, há uma lacuna na interpretação entre o que Jesus pode ter dito e o que a comunidade do evangelista transmite. Um bom exemplo é dado no Evangelho de hoje. Vemos isso no versículo que fala do cajado e das sandálias. Porque em Lucas – como em Mateus – Jesus diz “sem sandálias, sem cajado”; sendo que em Lucas, o cajado está no capítulo anterior. Mas o Jesus de Marcos diz “Leve um cajado e sandálias”. Olhando assim com mais minúcia, os escritos, podemos perceber de que os Evangelhos foram escritos para as comunidades cristãs às quais quem escrevia se dirigia e que as palavras de Jesus foram adaptadas às novas circunstâncias dos missionários.
São Lucas fala dos 12 apóstolos e dos 72 discípulos. Baseando-se no conteúdo do envio dos 12 apóstolos para fornecer mais elementos para o envio dos 72, sendo que 72 é o número de nações pagãs na Bíblia, daí percebemos que o Jesus de Lucas estabeleceu os 12 apóstolos para anunciar o Reino de Deus, mas também um grupo muito maior encarregado de anunciar esse Reino a todas as nações, representadas 72, então essa é a mensagem de Lucas enviou-os “dois a dois, adiante de si, a todas as cidades e lugares para onde ia”. Ele dividiu com os enviados o anúncio da Boa Nova. Escolheu, entre os seguem o Senhor, pessoas que levaria a sua palavra, levariam o próprio Jesus aos que ainda não o conheciam! Isso mostra a confiança de Jesus naqueles que Ele escolheu…
O envio de mensageiros em duplas era a forma de agir nos círculos judaicos, porque o testemunho de duas pessoas atesta a veracidade da mensagem. Vemos isso nos Atos dos Apóstolos, com Pedro e João, Paulo e Barnabé, e assim por diante. Também vemos em todo o Antigo Testamento que são necessárias duas testemunhas para condenar alguém, e esse também é o caso na Paixão de Jesus.
Aquilo que foi dado naquela época também foi feito por São Gregório Magno, quando escreveu: há “amor a Deus e amor ao próximo”. O Senhor enviou seus discípulos para pregar de dois em dois para nos sugerir, sem dizê-lo, que qualquer pessoa que não tenha caridade para com os outros não deve, de forma alguma, assumir o ministério da pregação”, e isso ainda é válido e podemos atualizá-lo para o nosso tempo. Duas pessoas nunca olham para uma paisagem, uma pintura… ou um ser humano da mesma maneira. Duas pessoas nunca têm a mesma experiência, nem a mesma visão do mistério de Cristo. As coisas e pessoas, vistas por duas pessoas torna possível não reduzir a proclamação do Evangelho e o mistério de Cristo a um único olhar, dando possibilidade de vendo de forma diferente, acolher, respeitar e acolher o outro, que também busca o Senhor e a verdade, da qual não somos donos. É preciso nos abrirmos a outra sensibilidade. Sensibilidades diferentes, que nos levam em Cristo a olhar os que veem as coisas de forma diferente de nós, como alguém que agrega e ajuda no nosso crescimento!
Irmãos e irmãs, os Evangelhos são a vida das comunidades cristãs oferecidas às nossas vidas… e isso deveria nos ajudar a aceitar o outro, o novo e as visões diferentes, numa partilha de vida e de busca…
Uma pessoa não se torna discípula de Jesus, ela recebe d’Ele a missão e a graça necessária para cumpri-la, sendo enviada, para viver e transmitir o Senhor. Portanto, há uma dupla tarefa: ouvir a Deus para receber dele nossa missão específica e orar, orar sem cessar, para que Deus envie trabalhadores para sua colheita. Mas nunca devemos perder de vista o fato de que a missão é a missão de Jesus, e que somos apenas seus enviados. Devemos ser transparentes para que a pessoa de Jesus possa ser reconhecida por meio de nós, onde quer que estejamos.
As múltiplas recomendações de Jesus, são como muitos meios de nos conformarmos ao mestre, meios que nos farão adquirir uma liberdade com relação às coisas materiais e permitir que as realidades espirituais se tornem visíveis em nós. Mas, para viver isso, precisaremos pedir incessantemente a graça de sermos discípulos, orando sempre. Orar para que Deus habite em nós e transpareça através de nós, para que outros homens, ao nos encontrarem, possam encontrá-lo.
“Os setenta e dois voltaram cheios de alegria” (v. 17). Não se trata de uma alegria efêmera, decorrente do sucesso da missão; pelo contrário, é uma alegria enraizada na promessa de que – diz Jesus – “seus nomes estão escritos no céu” (v. 20). Com essa expressão, o Senhor nos fala da alegria interior, a alegria indestrutível que brota do conhecimento de ter sido chamado por Deus para seguir Seu Filho. Como nos fala São Bento em sua Regra: “Exerçam, portanto, … este zelo com amor ferventíssimo. Isto é, antecipem-se uns aos outros em honra. Tolerem pacientissimamente suas fraquezas, quer do corpo quer do caráter, rivalizando em prestar mútua obediência; ninguém procurando aquilo que julga útil para si, mas, principalmente, o que o é para o outro; pondo em ação castamente a caridade fraterna, no temor de Deus com amor; … nada, absolutamente, anteponham a Cristo que nos conduza juntos para a vida eterna”. Amém